A diferença entre a ira judicial e o desprazer paternal
Como podemos ser justificados pela fé e,
apesar disso, precisarmos continuar confessando nossos pecados, todos
os dias, para que sejamos perdoados? Por um lado, o Novo Testamento nos
ensina que, quando cremos em Cristo, a nossa fé é atribuída como justiça
(Romanos 4.3,5-6); a justiça de Deus é imputada a nós (Filipenses 3.9).
Em Cristo, permanecemos diante de Deus como pessoas justas, e aceitas,
sim, e “perdoadas”, conforme Paulo afirmou: “É assim também que Davi
declara [em Salmos 32.1] ser bem-aventurado o homem a quem Deus atribui
justiça, independentemente de obras: Bem-aventurados aqueles cujas
iniqüidades são perdoadas, e cujos pecados são cobertos” (Romanos
4.6-7). Portanto, na mente de Paulo, a justificação envolve a realidade
do perdão.
Contudo, por outro lado, o Novo
Testamento também ensina que o nosso perdão contínuo depende da
confissão de nossos pecados. “Se confessarmos os nossos pecados, ele é
fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda
injustiça” (1 João 1.9). Confessar os pecados é uma parte do andar na
luz, que temos de praticar, a fim de que o sangue de Cristo continue a
purificar-nos de nossos pecados — “Se, porém, andarmos na luz,
como ele está na luz… e o sangue de Jesus, seu Filho, nos purifica de
todo pecado” (1 João 1.7). E Jesus nos ensinou a orar diariamente:
“Perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós temos perdoado aos nossos
devedores” (Mateus 6.12).
Então, como devemos nos ver em relação a
Deus? Todos os nossos pecados já estão perdoados ou são perdoados dia
após dia, à medida que os confessamos? A justificação significa que
todos os pecados — passados, presentes e futuros — estão perdoados no
caso das pessoas justificadas? Há outra maneira de vermos os nossos
pecados em relação a Deus? Ouçamos, primeiramente, o pastor e teólogo
Thomas Watson, que viveu há 350 anos.
Quando percebi que
Deus perdoa todos os meus pecados, entendi que isso se referia a pecados
passados, uma vez que os pecados por vir são perdoados somente quando
nos arrependemos deles. Na verdade, Deus já decretou o perdão desses
pecados. E, quando Ele perdoa um pecado, perdoará, no devido tempo,
todos os outros. Mas os pecados futuros não são realmente perdoados até
que nos arrependamos deles. É absurdo pensar que o pecado é perdoado
antes de ser cometido…
A opinião de que os
pecados futuros, bem como os pecados passados, são perdoados remove e
anula a intercessão de Cristo. Ele é um advogado que intercede em favor
de pecados cotidianos (1 João 2.1). Mas, se o pecado é perdoado antes de
ser cometido, existe alguma necessidade da intercessão diária de
Cristo? Que necessidade tenho eu de um advogado, se o pecado é perdoado
antes de ser cometido? Portanto, embora Deus perdoe, no caso do crente,
os pecados passados, os pecados vindouros não são perdoados, enquanto
não há arrependimento renovado (Body of Divinity,Grand Rapids: Baker Book House, 1979, p. 558).
Watson está correto? Depende. Sim, creio
que podemos aceitar esse ponto de vista sobre o perdão, se tivermos em
mente, com firmeza, o fato de que o preço, o fundamento e a garantia de todo o perdão (de
pecados passados, presentes e futuros) foi a morte de Cristo, de uma
vez por todas. A ambigüidade surge com a pergunta: quando obtemos o
perdão para todos os pecados que cometeremos? Essa pergunta significa:
quando o perdão foi comprado e garantido para nós? Ou significa: quando o
perdão será aplicado a cada transgressão, de modo que remova o
desagrado de Deus para com ela? A resposta à primeira pergunta poderia
ser: na morte de Cristo. A resposta à segunda pergunta: na renovação de
nosso arrependimento.
Isso levanta outra pergunta: Deus sente
desprazer em relação a seus filhos justificados? Se isto é verdade, que
tipo de desprazer é este? É o mesmo que Deus sente em relação aos
pecados dos incrédulos? Como Deus vê os nossos pecados diários? Ele os
vê como transgressão de sua vontade, que O entristece e O deixa irado.
Contudo, essa tristeza e essa ira, embora motivadas por responsabilidade
e culpa autênticas, não é a “ira judicial”, utilizando a expressão de
Thomas Watson. “Embora o filho de Deus, após receber o perdão, possa
incorrer no desprazer de seu Pai celestial, a ira judicial de Deus é
removida. Ainda que Deus possa usar a vara, Ele já removeu a maldição.
As correções podem sobrevir aos santos, mas não a destruição” (Body of Divinity, p. 556).
Deus também vê nossos pecados como
“cobertos”, e não como “imputados”, por causa do sangue de Cristo
(Romanos 4.7-8). Assim, de um modo paradoxal, Ele vê nossos pecados como
portadores de culpa (que causam tristeza e ira) e, ao mesmo tempo, como pecados que já têm o perdão garantido (embora
ainda não perdoados, no sentido da reação de Deus à confissão e da
remoção do seu desprazer paternal). O que causa a distinção entre a ira judicial de Deus para com os pecados ainda não confessados dos incrédulos e o desprazer dEle para
com os pecados não perdoados dos crentes? A diferença é que o crente
está unido a Deus, em Cristo, mediante uma nova aliança. A promessa
desta aliança é que Deus jamais deixará de fazer-nos o bem e jamais
permitirá que O abandonemos, mas sempre nos trará à confissão e ao
arrependimento. “Farei com eles aliança eterna, segundo a qual não deixarei de lhes fazer o bem; e porei o meu temor no seu coração, para que nunca se apartem de mim” (Jeremias 32.40).
Este compromisso da nova aliança foi
comprado por Cristo para nós (Lucas 22.20) e aplicado por meio da fé, de
modo que, embora incorramos no desprazer de Deus, nós, que somos
justificados pela fé, nunca incorremos na ira judicial de dEle, por toda
a eternidade. Em outras palavras, visto que o perdão de todos os nossos
pecados foi comprado e garantido pela morte de Cristo, Deus está
plenamente comprometido em trazer-nos de novo ao arrependimento e à
confissão, tão freqüentemente quanto necessário, a fim que recebamos o
perdão e o desfrutemos na remoção do seu desprazer paternal. Nosso Pai
se compraz em restaurar-nos à sua satisfação, até que essas restaurações
não sejam mais necessárias.
Devocional extraído do livro Provai e Vede, de John Piper.Copyright: © Editora FIELPermissões: a postagem de trechos deste livro foi realizada com permissão da Editora Fiel. Se você deseja mais informações sobre permissões contate-os.| Baixe o ebook | Adquira o livro |
Fonte: Voltemos ao Evangelho
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